Dentro de limites, cercado, isolado, recluso, separado dos outros, impedido de ultrapassar certa demarcação. A situação física, de um corpo que não pode sair de onde está, passa a ser também psicológica.
“Não há saída, não tenho tenho como fugir” são sentenças que se impõem nessas condições e geram dúvidas sobre o ser e o fazer. “Como não enlouquecer?” Perguntamos diante da indeterminação imposta, à partir da privação.
Imaginar. Criar na mente ideia do que é/foi/ou será lá fora. A ânsia por contato, por diálogo, por comunicar, ou mesmo por ter escolha, ter o domínio do seu próprio destino — do seu próprio corpo, faz pulsar uma antiga necessidade humana de contar, registrar, materializar o que se deseja ou o que se sente falta:
Saudade.
Paixão.
Crença.
Dar forças ao corpo para que resista ao distanciamento — ainda que temporário. O indivíduo é coletivo (e vice-versa) e quando privado do convívio, é natural que o busque de outras maneiras, que se comunique ainda que consigo mesmo.
E tatuar é a forma de gravar no corpo seu desejo-memória, de lembrar-se para sempre. Ato tão natural desde… (sempre?) que não o deixaria de ser nessas situações. Fica evidente a ligação com o confinamento dado a presença constante (historicamente) nesses ambientes onde o relógio anda em câmera lenta (“tic, tac, ainda é nove e quarenta”).
Como nos conta Silvana Jeha no livro “Uma História da Tatuagem no Brasil”, boa parte dos registros das tatuagens na cultura ocidental vem desses espaços de restrição. É certo que tais marcas não se limitam a estar ali, mas lá se fazem quase que necessárias, tamanha a importância que lhe atribui quem as carrega.
E o confinamento pode se fazer de inúmeras maneiras, que não só na óbvia associação com o cárcere.
Nos quartéis e seus alojamentos de regras rigorosas, soldados exibem suas tatuagens como condecorações de méritos, memórias de amor a pátria e aos seus, e sinais de bravuras. Os navios em suas infindáveis jornadas ao mar foram a um só tempo ambientes propício ao ato e difusores dessas marcas na cultura ocidental. Até mesmo a discriminação social que desloca pessoas para as margens, relegando-as a áreas restritas da cidade, podem ter inspirados estes sujeitos a se tatuarem, pois nas margens da sociedade ocidental foi por onde ela mais se difundiu.
Também não é a toa que cadeias e prisões do mundo todo compartilhem os tais sinais, a ponto de serem vistas como uma subcultura dentro da própria história da tatuagem. Nas cadeias russas, nas prisões francesas, nos cárceres da América central e do Norte, também no Brasil e em todos os lugares, correm ainda que proibido pelas autoridades e mesmo sem os meios mais adequados para fazê-las. Tamanha é a vontade de se ter o corpo marcado que se recriam e adaptam instrumentos capazes de tornar permanentes os anseios mais humanos.
E que vontade é essa que atravessa o tempo e o espaço, e mesmo em situações adversas, pulsa com tal força capaz de transpor limitações e expandir-se até quando posta em confinamento?
O que é que nos move a romper a fronteira da carne e deixar marcas tão duráveis e efêmeras quanto nosso próprio corpo?
O que encontramos no confinamento que incita essa ligação do íntimo com o ancestral e com a permanência?
É preciso expandir e aprofundar o olhar sobre essa prática que nos acompanha desde muito tempo e que ainda é pouco entendida — apesar de muito consumida. Sua história é tão diversa quanto sua origem e seus meios, e até os dias de hoje é ensinada basicamente como uma tradição oral, contada de uns aos outros, apesar de aparecerem cada vez mais descobertas arqueológicas e estudos direcionados a entender a tatuagem em sua pluralidade.
E pelo fato da tatuagem não ser devidamente institucionalizada – por exemplo, tatuador não é uma profissão reconhecida no Brasil – abre um campo muito maior de investigações onde, cada um que se conecta com a prática de alguma maneira, pode contribuir com essa cultura multiforme e em constante transformação.
* Silvana Jeha é autora do livro Uma História da Tatuagem no Brasil (Editora Veneta, 2019)
TAIOM é tatuador, artista e pesquisador. Seu estudo volta o olhar ao corpo como agente social em construção, que se posiciona e grava suas ações, seja como indivíduo ou coletivo.
Esse texto foi publicado também na revista acadêmica Rebento (UNESP) e você pode conferir nesse link.