O Blog do tattoo2me está apenas no começo, engatinhando para trazer conteúdo que seja interessante para todos.
E quando o assunto é tatuagem e pele negra, para começar a conversa, fizemos uma live.
Algumas semanas atrás, o artista @leoneguin escreveu o texto Tatuagem e Pele Negra, e para completarmos o conteúdo fizemos uma live que você pode conferir parte dela aqui.
Para continuar no assunto, e nunca ser um ponto final, mas um ponto de partida, a live virou um texto, e como falei acima, estamos apenas no começo.
Leo, me cedeu uma entrevista sobre o tema, e como complemento do seu texto, então abaixo, eu e você, teremos a honra de aprender mais sobre o assunto.
Vamos lá?
Entrevista na íntegra para você:
Leo, se apresenta aqui pros seguidores do tattoo2me: Fala um pouco mais sobre a sua trajetória profissional;
“Desenho desde criança e o desenho me direcionou para a tatuagem. Comecei a tatuar no início dos anos 2000, quando a tatuagem estava começando a ser mais aceita pela sociedade e os estúdios estavam adotando um visual mais clean.
No início atuei mais aqui em Vila Velha mesmo, mas com o tempo, tive a oportunidade de fazer alguns intercâmbios pelo Brasil que logo se estenderam para alguns lugares do exterior também.”
Você já está algum tempo colaborando com o blog do tattoo2me, conta mais sobre isso!
“O convite aconteceu de uma maneira inusitada, já conhecia o blog de outras ocasiões, inclusive já havia sido entrevistado por vocês, e como eu sempre estou pesquisando sobre assuntos relacionados à história da tatuagem, acabei esbarrando em uma matéria do blog que trazia algumas informações equivocadas, foi quando entrei em contato fazendo algumas observações e na ocasião a Fernanda gostou das sugestões e fez as alterações que eu apontei no artigo.
Um tempo depois, ela me convidou para ser um dos colaboradores do blog para expor as minhas ideias. Desde então contribuo com alguns artigos que são frutos das minhas pesquisas relacionadas à história da tatuagem.”
No último artigo você fez uma reflexão sobre tatuagem e pele negra, você pode falar um pouco mais sobre essa reflexão?
No texto você aponta a aversão em tatuar em pele negra, você pode falar sobre isso?
“Essa reflexão nasce de uma carência no que diz respeito a uma resposta mais objetiva sobre o tema.
Desde o começo da minha carreira esse tema tem sido recorrente na minha trajetória profissional, talvez pelo tom da minha pele ou pelo codinome que eu uso. Mas a verdade é que muito se discute sobre o tema, mas são poucas as respostas satisfatórias, na minha opinião.
Já havia dado uma declaração a respeito em um site de modificação corporal, mas na ocasião confesso que não me aprofundei muito em uma pesquisa mais sistemática sobre a questão, e talvez a minha resposta tenha sido mais do mesmo na época.
Agora com um pouco mais de maturidade profissional, acredito que consigo reunir argumentos mais sólidos para construir uma linha de raciocínio mais coerente sobre a discussão.
Antes de entrarmos de fato na pauta, acho importante fazer algumas observações.
Começando pela questão do termo mais correto, as palavras mudam de semântica com o tempo. Há algumas décadas, chamar alguém de “preto” era ofensivo enquanto “negro” era considerado mais respeitoso. Atualmente, uma ala mais radical prefere o termo “preto” com base no termo “black” em inglês, mas temos que lembrar que são idiomas diferentes e contextos históricos diferentes. Se você me perguntar por qual termo prefiro ser chamado, eu direi: experimenta me chamar pelo meu nome que não terá erro, mas primeiro, eu prefiro ser tratado com respeito e ter os meus direitos garantidos independente do termo mais correto.”
Aproveitando o gancho da pauta, como você enxerga a construção do preconceito étnico e as influências disso na estrutura social dos dias atuais?
“Essa aversão que menciono no artigo é fruto de uma herança histórica que está muito mais ligada às fundações da nossa sociedade do que imaginamos.
Toda essa estrutura social que molda a nossa civilização atualmente, afeta vários setores inclusive a arte corporal. Sendo assim, as raízes da problemática são muito mais profundas e complexas.
Para entender isso, temos que voltar no tempo e cruzar algumas informações para chegar a uma conclusão mais concreta. Os resultados de quase três séculos e meio de escravidão de povos africanos em grande parte, resumidamente está presente nessa aversão de que estamos falando.”
Sugestão de audição: De onde sua família veio? https://open.spotify.com/episode/2nmfUuz1UACEIpJ1qaasoZ
E sobre o oportunismo como as principais causas dos mitos que circulam no que diz respeito a tatuagem em peles negras, você pode passar uma visão mais técnica nesse sentido?
“Grosso modo, o oportunismo seria o outro lado da mesma moeda, na minha opinião. Claro que existem alguns poréns entre um lado e outro, que talvez aconteça de maneira inconsciente em alguns casos, mas desbravar um mercado em cima de uma fragilidade social, pode não ser a melhor abordagem a ser feita. Eu até posso entender que alguns se autodenominem “especialista em tatuar peles negras” de maneira inocente, acreditando realmente na alcunha de maneira genuína, mas como aponto no texto, isso acaba fortalecendo o mito de que peles escuras precisam de materiais e técnicas específicas no procedimento.
De fato uma pele com mais melanina oferece um desafio a mais, mas, ao meu ver, não é nada que necessite de uma técnica diferente do que estamos acostumados a fazer no nosso dia a dia. Um tatuador que se preze tem que estar apto para atuar em qualquer circunstância, independente do tom da pele.”
Pelo o que entendi Leo, uma artista ou artista apenas deixaria de fazer um trabalho em pele negra, por falta de conhecimento, seria isso?
“Eu diria falta de conhecimento somada a um racismo velado que está presente na nossa cultura de maneira tão enraizada, que age sutilmente em diferentes situações onde acabamos não nos dando conta, por exemplo, se recusar a tatuar peles mais escuras.”
Leo, um questionamento que recebo muito no direct: porque nas convenções é mais comum peles claras nas competições. Você acredita que não é possível fazer realismo, ou alguns estilos em pele negra?
“Esse é outro motivo que resulta na busca por essa suposta “especialização”. A falta de exposição de trabalhos em peles escuras seja em convenções de tatuagem ou nos portfólios dos artistas, muitas vezes inibe pessoas negras de se tatuarem ou geram esse mito da especialização.
Sobre a possibilidade de se realizar certos estilos em peles negras, acredito que todos os estilos são possíveis, desde que realizado com cuidado. De fato peles mais escuras pedem uma abordagem mais cautelosa para se ter um resultado satisfatório e duradouro, e talvez esse seja o xis da questão. Pode ser que essa cautela esteja sendo interpretada como especialização tanto por leigos quanto por oportunistas.”
Uma pessoa que está buscando artistas, e tem a pele mais escura, o que ela deve observar na hora de escolher um artista?
“Primeiramente a pessoa deve procurar referências de um tatuador ou tatuadora que além de ter um bom trabalho também tenha boa vontade em tatuar peles negras, não necessariamente um artista negro porque isso por si só, não torna ninguém capacitado a executar um bom trabalho em peles mais escuras. Em segundo lugar, deve-se considerar as sugestões profissionais para uma boa execução do projeto, e por último, seguir as recomendações no pós para garantir uma boa cicatrização.”
Como você enxerga a construção do preconceito étnico e as influências disso estrutura social dos dias atuais?
“Bom, à história se desenrola diferente em cada lugar, mas os resultados são desastrosos em todos eles. Posso trazer alguns exemplos clássicos aqui para ilustrar a nossa conversa.
Se falarmos do preconceito étnico ou racial de maneira mais ampla, vamos ter que incluir muitas outras situações aqui na conversa como a xenofobia contra asiáticos, judeus, árabes, indianos, latinos entre tantas outras situações que poderíamos destacar, mas focando nas questões negras, é fácil observar como os resultados da escravidão moldaram a nossa estrutura social atual.
Com o fim da escravidão, os negros libertos não receberam direito à propriedade e nem receberam trabalhos dignos, isso resultou na formação de bairros periféricos, na busca por subempregos com baixos salários e no encarceramento em massa da população negra por vadiagem. Se formos para o meio corporativo, veremos como cargos de mais destaque com maiores salários são raramente ocupados por pessoas negras, enquanto serviços gerais são ocupados largamente por pessoas negras.
Na área da educação, se analisarmos a quantidade de negros que conseguem concluir o ensino médio e ingressar nas universidades, veremos uma pequena parcela das vagas sendo ocupadas por pessoas negras. Pode até parecer um discurso corriqueiro, mas considerando que a população negra compreende mais de cinquenta por cento da população brasileira, a representação em vários setores da nossa sociedade não condiz com os dados demográficos.
Para destrinchar melhor o debate, a discussão teria que ser um pouco mais ampla, mas penso que esses exemplos deixam claro os resultados que a escravidão de povos africanos deixou na nossa estrutura social.”
E pra fechar: quais pautas no modo geral, você gostaria de ver artistas abordando e desmitificando em suas redes sociais? Acredito que está na hora da gente responder questionamentos que antes não eram feitos, você concorda?
“Acredito que a tatuagem tem muitos mitos repassados para frente de maneira equivocada.
Por exemplo, a máxima de que pessoas negras são mais propensas à queloide e consequentemente acaba inibindo pessoas com ascendência africana de se tatuarem.
A queloide acontece quando o corte é mais profundo, como trabalhamos entre a primeira e a segunda camada da pele, não há riscos de resultar em uma queloide porque são apenas alguns milímetros de profundidade.
Outro mito é de que pessoas negras não podem fazer tatuagens muito elaboradas. Na verdade, a cautela que mencionei anteriormente sugere justamente uma abordagem mais cuidadosa na criação do projeto.
Pessoas com tom de pele mais escuras devem optar por desenhos com detalhes mais abertos e definidos para conseguir um bom realce.
Para finalizar, tem a questão das cores em peles negras. De fato, quanto mais escuro o tom da pele, menos possibilidade de se trabalhar com um número variado de cores, mas isso pode ser compensado com um projeto bem elaborado explorando a personalidade do cliente.”
Essa entrevista me enche de orgulho, ter esse conteúdo no blog para os leitores, artistas e para o mundo da tatuagem é algo muito rico.
Muitos storeis, ao vivos e vídeos são feitos nas redes sociais, mas precisamos também de conteúdo em texto, pessoas escrevendo e falando sobre o assunto para deixar para futuras pesquisas e discussões.
Obrigada Leo pelo conteúdo e pesquisa, em breve teremos mais textos e vozes para o assunto.
Eu falei que era apenas o começo.
Leia aqui a nossa primeira matéria sobre o assunto, uma entrevista com Finho, de Salvador sobre o projeto: “Pele preta tatuada”, escrito em 2016.
https://blog.tattoo2me.com/pelepretatatuada-4a04efb9b51d
30 Tedx brasileiros com mulheres negras:
https://blog.tattoo2me.com/30-tedx-brasileiros-com-mulheres-negras