Quando pensamos em tatuagem, geralmente associamos a ideia a um conjunto de símbolos específicos, que estão ligados à tradição dessa arte: a rosa, o marinheiro, a cigana, o tribal, o oriental etc. No entanto, de uns tempos pra cá, esse tipo de trabalho começou a mudar muito e novos símbolos foram incorporados aos corpos. Falar de tatuagem contemporânea é levar em conta também o abstrato, o ignorant style, o blackwork e até mesmo desenhos feitos por quem não sabe desenhar.
A tatuadora Helen Fernandes, mais conhecida como Malfeitona, bombou fazendo tatuagens com desenhos “mal feitos”. O que isso significa? Bem, que os desenhos não se adequam às normas daquilo que é considerado “saber desenhar” — mas nem por isso seu trabalho teve baixa procura, muito pelo contrário. Brincando com o fato de seu estilo ser considerado mal feito, a tatuadora criou desenhos irônicos e imagens da vida cotidiana de seus clientes — muitas vinculadas ao mundo dos quadrinhos, animação e mídias em geral -, o que atraiu muito a atenção do público. Hoje em dia, ela conta com mais de 90 e-mails de clientes quando anuncia a ida a cidades grandes como São Paulo.
Por ser um tipo de desenho associado à ironia, à brincadeira e principalmente à quebra da norma padrão, muitas pessoas consideraram que seu trabalho não tinha seriedade e que seria um desrespeito à tradição da tatuagem. Mas o que seria, afinal, das artes — e digo também da vida — sem as novidades? O contemporâneo é feito do novo, e o novo pode ter algo muito rico a acrescentar, principalmente se for feito com responsabilidade e busca por evolução. É isso que vejo no trabalho da Helen. Não vejo mais como um trabalho baseado apenas em desenhos mal feitos, mas sim um novo estilo desenvolvido por ela. Meu trabalho com tatuagem não tem nada a ver com o da Helen — faço tatuagens com princípios oldschool (pensando na durabilidade, amo usar linhas grossas e cores sólidas), mas a Malfeitona me agregou muito como uma nova forma de pensar o desenho, desapegando de regras no ato de desenhar. Além de tudo, ver uma mina encabeçando esse processo de renovação e afrontando toda forma de crítica é inspirador, afinal o mundo da tatuagem desde sempre foi muito masculino e fechado à representatividade feminina.
Para esclarecer mais sobre seu trabalho, conversei com a Helen e tirei algumas dúvidas sobre seu processo e sua visão sobre o que virá adiante. Confira a entrevista a seguir.
Obs.: M. se refere a mim (Mari), e H. são as respostas da Helen.
M.: Como foi o processo de começar a tatuar seus desenhos? A procura pelo seu trabalho foi grande desde o começo?
H.: Foi um conjunto de condições favoráveis. Eu tinha amigos tatuadores e isso me fazia ver como era o processo, e eu já tinha sido ajudante em um flashday. Na época, eu era estudante de engenharia, e trabalhava em laboratório porque eu fazia pesquisa na área, então já estava familiarizada com métodos de biossegurança. Eu revendia materiais de tatuagem e assim eu tinha mais facilidade de acesso. Sempre fiz esse tipo de desenho tanto pra presentear amigos como pra mim mesma.
Nunca pensei em trabalhar com arte e nunca via aquilo como arte até começar a ser validado por outras pessoas. Tatuei primeiro meu companheiro; tinha dado um desenho de presente pra ele, e como já tínhamos uns materiais em casa, ele sugeriu que eu tatuasse ele. Aí acabei fazendo. Um outro amigo próximo também pediu. A partir disso, criei o Instagram chamado Malfeitona onde eu postava meus desenhos e postei essas duas tatuagens que eu fiz, com o objetivo de mostrar pro nosso círculo social. Aí outros amigos começaram a pedir, e a procura começou a crescer… Mas não foi muito grande desde o começo.
A procura grande começou mesmo depois de umas 30 pessoas. Um jornal local resolveu fazer uma matéria sobre isso, que era pequena mas que acabou viralizando porque foi polêmica; ficou parecendo que eu comprei um kit de tatuagem na internet e zuava com isso. Isso deu muitas visualizações, e as pessoas que entraram no meu Instagram viram que não era essa a proposta, e assim comecei a ter clientes. Minha maior clientela é em São Paulo, pra onde eu viajo sempre pra poder tatuar. Em Salvador eu tatuo uma vez na semana, é bem tranquilo; quando abro a agenda pra São Paulo, recebo uns 90 e-mails.
M.: Você tem bastante seguidores e muita gente que apóia e curte seu trabalho. Como foi a reação do público em geral? Teve muita crítica por parte de tatuadores?
H.: No começo eu tive muita crítica. Mas como todo hater, eles arranjaram outras coisas pra odiar depois de um tempo. Tatuadores me criticaram muito por conta de não saber como foi o processo, porque eles viram apenas pelas matérias de jornal, e sinceramente, jornalistas podem ser muito tendenciosos. Eu já vi todo tipo de coisa e versão dessa história que eu conto. Outros tatuadores não gostam por conta do estilo. A galera acha que tem que estar dentro de um estilo de tatuagem, seja o oldschool, o newschool, realismo, o retrato. Mas tudo bem, eu respeito. Eu também não sou fã de muitas coisas na área de tatuagem, não consumo certos tipos de tatuagem e tá ok. Eu só acho uma mente muito fechada.
Recentemente, fui convidada a participar de uma convenção de tatuagem em Minas Gerais, e simplesmente todos os tatuadores se juntaram e fizeram um abaixo-assinado dizendo que não queriam ir para um evento onde eu estivesse, e que eu desrespeitava a arte da tatuagem. Iam boicotar o evento. Com isso, a convenção cancelou a minha ida. Acho que eu dialogo muito mais com eventos de arte, quadrinhos, político/música/teatro ou eventos culturais em geral do que convenção de tatuagem. Eu nunca me interessei em ir, só ia nesse porque fui convidada. Acho que meu público é bem diferente do das convenções de tatuagem — inclusive, muitos dos meus clientes só tem tatuagens minhas.
Apesar disso, há também tatuadores que acham massa. Muitos deles entendem meu trabalho e sabem que eu faço tudo certinho, e que a diferença é só uma questão de estilo mesmo, uma questão estética. Se eu estou desagradando esses homens que tem mulher pelada tatuada no banner do estúdio, acho que estou até no caminho certo.
M.: A sua proposta nas tatuagens “mal feitas” é que sejam desenhos que não se alinham a essa ideia do desenho perfeito e impecável. Como você desenvolve esses desenhos? Você acha que, quanto mais você desenhar, mais próximo ao desenho bem feito vai ficar, ou já acha que desenvolveu uma linguagem própria?
H.: Eu não sei desenhar de forma realista. Mas como sou engenheira, eu peguei matérias de desenho. Então eu sei alguns princípios de perspectiva. Não sei desenhar um gato, por exemplo, mas acredito que pelas minhas técnicas de desenho, se eu pegar umas aulas, eu consigo. Mas não é do meu interesse, eu gosto muito de quadrinho e charge, animação, então a minha referência estética é essa. Eu já fiz muitas tatuagens e não acho que tenha perdido o meu estilo. Acho que ganhei experiência de aprimorar a técnica da tatuagem, sem cometer erros como estourar traço, ficar falhado, etc. É isso que vou aprimorando, mas não perco estilo porque é o tipo de coisa que estou acostumada a desenhar.
M.: A ideia do mal feito se aplica na hora de tatuar também (nas técnicas que você usa, por exemplo)? Você teve ajuda de outros tatuadores pra desenvolver suas técnicas?
H.: Eu não tatuava bem quando comecei, como qualquer pessoa que começa. Quando tatuei meu companheiro e meu amigo, foi completamente na louca; eu só obedecia às ordens de biossegurança, mas não tinha nenhuma noção técnica. Depois, fui vendo videoaulas, quando tatuava meus amigos tatuadores eles iam me ensinando, e aí fui desenvolvendo a técnica de tatuagem porque afinal de contas eu ia tatuar outras pessoas que não eram meus amigos. Então não, a parte mal feita não se aplica à técnica de tatuagem. Se eu puder, vou ficar o mais perfeita possível no quesito técnica. Acho que vamos aprendendo sempre, e sinto que estou infinitamente melhor do que quando comecei e pretendo sempre melhorar.
M.: Seu trabalho serviu de inspiração pra bastante gente começar a tatuar na mesma linha de desenhos — nos Estados Unidos e outros países, tem até um nome pra isso, que é o “ignorant style”. O que você acha desses novos trabalhos que tem surgido hoje em dia? Qual acha que vai ser o percurso da tattoo de agora em diante?
H.: Eu posso ter servido de inspiração pra muita gente, mas não fui a única pessoa que começou a fazer isso. Está ocorrendo um movimento de artistas visuais de forma geral que estão passando a arte que eles faziam em outras superfícies para a pele, então é como se Picasso resolvesse tatuar o estilo de arte que ele faz. Inclusive, esse é meu objeto de pesquisa, eu estou fazendo mestrado em comunicação e estudando a influência do Instagram na tatuagem. Acredito firmemente que o fato das pessoas usarem tanto o Instagram, que é um lugar de compartilhamento de imagens mas também uma rede social, faz com que muitas pessoas não teriam acesso à arte de tatuagem terem acesso e criem vontade de se tatuar, como faz com que artistas vejam outros tatuadores e queiram entrar naquilo também. O acesso à informação, a videoaulas, a facilidade de comprar material na internet, o fato de não ter mais que soldar agulha e sim poder comprar agulha do tipo específico, essas facilidades tão avançando as coisas. Não acho que todo mundo tem que inventar a roda, porque senão não existiria um carro elétrico hoje em dia, não existiria um foguete. A partir desse ponto, a gente pode reproduzir novos estilos de arte na pele pra não estar só no quadro. Acho que é uma tendência mundial. A tatuagem veio de uma coisa muito antiga, já foi muito marginalizada e hoje se estruturou muito e virou uma indústria. A partir desse conforto em que a tatuagem já está mais socialmente aceita, estamos podendo ousar mais e fazer isso crescer, e ser considerada arte. Todo mundo lutou pra ela ser considerada arte, e a arte é isso. Arte se reinventa e isso que é massa e interessante.
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Além de seu projeto com tattoos, a Helen também tem uma loja chamada Malfeiloja, que pode ser acessada pelo Instagram (clique aqui) ou pelo site:
SOBRE A AUTORA:
MARI DAGLI
Tatuadora, artista visual e viciada em estudar a cultura artística underground.
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