Por mais triste que seja me afastar da tatuagem na quarentena, o isolamento foi uma forma de pensar mais sobre a relação do meu corpo no mundo. Sempre me vem à tona refletir sobre os padrões de beleza em que me insiro (ou não) a partir de meus aspectos físicos. Escrevi um texto falando sobre o hirsutismo (excesso de pelos) e a relação com as origens mediterrâneas, e agora escrevo sobre o corpo não-padronizado. Para colocar a cereja no bolo, vou embutir aqui a tatuagem como valorização da autoestima: como que ela pode nos ajudar nesse processo?
Quando pequena, compreendia meu corpo como deslocado em comparação às minhas amigas; sempre fui a maior delas, e achava que isso era uma anomalia que me impedia de me relacionar adequadamente. Já fazem aproximadamente 15 anos que uma rotina de exercícios físicos e dietas tem aparecido em minha vida como uma incessante busca pelo padrão de magreza; não por acaso, os transtornos de compulsão alimentar e anorexia são predominantes em mulheres. Além disso, tive problemas com meu cabelo não ser liso e escorrido durante minha época da escola – não tínhamos a quantidade de produtos pra cabelo cacheado que temos hoje. Hoje em dia, considero meu corpo medianamente inserido dentro dos padrões estéticos de beleza, mas ainda me assombra uma sensação de não-pertencimento e busca pela perfeição. Logicamente, proveniente de padrões impostos.
Esse tipo de preocupação não se limita às mulheres brancas como eu. Deve-se recordar que essa imposição estética é multifacetada, afetando às categorias sociais que não se inserem no padrão branco, cis gênero, heterossexual e de classe média-alta. Ela detona a autoestima e dificulta olhar a própria imagem como participante e atuante na sociedade, já que focamos que o problema central da nossa vida é o corpo desviado.
Agora, como a tatuagem se encaixa aqui?
Façamos uma viagem no tempo. A tatuagem ocidental (trazida por marinheiros ingleses, distinta das existentes na América como expressão de povos indígenas) aparece na América entre os séculos XIX e XX, demarcando a identidade de diversos sujeitos. Seriam os marinheiros, imigrantes, militares, artistas circenses, presidiários, prostitutas – sujeitos marginalizados. Tatuar-se era uma forma de não esquecer-se de si mesmo, bem como de valorizar a própria existência, apesar da desumanização social de presidiários e prostitutas; da constante incerteza sobre a possibilidade de estar vivo, dos marinheiros, militares e imigrantes; e da venda da imagem do corpo “aberracional” dos artistas circenses. Ao se marcarem, esses grupos sociais nos lembraram que possuíam desejos, paixões, conflitos internos, nomes.
Desde sua chegada à América Latina, a tatuagem existiu como cultura de resistência; mas é nos anos 70 que se massifica, sendo veiculada pela mídia como símbolo de rebelião contra um sistema que impunha regras de comportamento. Então nomeada pelos norte-americanos como “renascimento da tatuagem”, ela permitiu uma autonomia e individualidade aos sujeitos, assim como a possibilidade de questionamento do status quo, expresso através das tribos urbanas dos punks, hippies e roqueiros.
Boa parte do alcance que tem hoje se deve à sua comercialização midiática (divulgação através de reality shows, por exemplo). Além disso, a venda midiática da rebeldia foi sempre posta dentro de certos limites (até onde não ameaçassem o sistema). Curioso é que houve também certa romantização de alguns dos setores rebeldes (Suely Rolnik atribui essa função de romantização e massificação a um interesse do capital), enquanto outros foram mantidos em sua posição marginalizada. Isso envolve questões sociais e raciais de exclusão de uma população da narrativa oficial. Por isso que acho tão válido o trabalho de Silvana Jeha na recuperação dessas histórias marginais e brasileiras, em seu livro “Uma História da Tatuagem no Brasil”.
O que quero dizer é que historicamente, ocorre uma tendência ao apagamento de certas identidades e à sua desumanização, o que se reflete também na autoestima ligada a esses setores. Esse apagamento se aplica especialmente ao corpo e a seus aspectos físicos: o corpo preto, trans, homossexual, gordo; e está muito ligado à falta de representação afirmativa destes grupos nos padrões de beleza, na arte, na tatuagem, na mídia. Olhando pra História da Tatuagem Brasileira – em maiúsculo, nosso nome próprio—, me anima ver que a cultura da tatuagem já fez parte desses corpos em contra-argumento ao que diziam as revistas de beleza e revistas científicas que ditavam quem tinha o direito de ser considerado humano, e quem deveria que ser excluído.
Comecei o texto falando de como padrões de beleza me afetam, para localizar minha compreensão dentro desse processo de valorização do corpo com a tatuagem. Afinal, cada vez que me tatuo, sinto que vejo e valorizo uma parte de mim antes excluída pela vergonha. Apresentei também exemplos de setores sociais que valorizaram suas identidades através da tatuagem, para compreendermos que a preocupação estética se estende às demais identidades. É importante enfatizar que a normatividade afeta cada um dos setores descritos de forma diferente; portanto, a função de valorização que a tatuagem possui em cada um é diferente.
Em seguida, venho indagar sobre onde está o lugar do questionamento na tatuagem, já que hoje em dia parece se dissolver em meio à comercialização. Mesmo dentro de uma cultura onde a discussão sobre feminismo e racismo é crescente, por exemplo, ainda vemos na tatuagem milhares de desenhos de mulheres em alusão à pornografia, e pouquíssimas imagens de pessoas pretas e de outras etnias nos feeds de Instagram. Com essa representatividade falha (ou a falta de qualquer representatividade), exclui-se alguns dos setores da cultura da tatuagem. Quando, na verdade, eles estão presentes em sua história desde sua origem na América Latina.
Acredito que haja uma série de perguntas que devemos ter em mente para começar a mudar esse cenário: quais desenhos estou divulgando para serem tatuados? Quais tipos de peles estou tatuando? Estudo peles num espectro fora ao que já conheço? Estou familiarizade com a origem dos símbolos que reproduzo? Estou estudando a valorização de cada tipo de corpo, de acordo com seu formato, cor, gênero específicos? A edição das minhas fotos mostra a pele como ela é?
Em suma, não tenho uma resposta pronta para construir um caminho mais inclusivo na tatuagem. Porém, antes de mais nada, seu histórico no Brasil já demonstra: ela já foi capaz de humanizar e valorizar a identidade de diversos setores da população, não apenas aqueles da “pele branca, lisa e magra pra portfólio”. Acredito que está na hora de dialogarmos cada vez mais sobre isso, sobre a potência que a tatuagem com base em sua história.
REFERÊNCIAS:
QUEIROZ, Christina. Corpos marcados: de símbolo marginal a ícone da cultura pop, estudo reconstitui a história da tatuagem no Brasil. Revista de Pesquisa FAPESP, 291, junho de 2020. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/corpos-marcados/>. Acesso em: 21 de julho de 2020.
ROLNIK, Suely. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer… São Paulo em Perspectiva, 15(3), 2001. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/spp/v15n3/a02v15n3.pdf>. Acesso em: 21 de julho de 2020.
JEHA, Silvana. Uma história da tatuagem no Brasil: do século XIX à década de de 1970. São Paulo: Veneta, 2019. 352 p.
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