Em 2019, a historiadora Silvana Jeha publicou um livro chamado “Uma História da Tatuagem no Brasil” pela Editora Veneta, onde compartilha um pouco de suas pesquisas acadêmicas com o leitor.
Sempre menciono o livro dela na lista de referência dos textos que costumo publicar por aqui. Tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente no lançamento do seu livro, em São Paulo, e hoje gostaria de compartilhar a entrevista que a Silvana gentilmente me concedeu.
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Silvana, você pode compartilhar um pouco da sua formação acadêmica e explicar como se deu a aproximação com o tema que resultou na publicação do seu livro?
“Eu sou doutora em História. Meu percurso de pesquisa começou com uma dissertação sobre guerras contra indígenas quando a família real chegou no Brasil. Estudei os kaigang da região Sul e os chamados botocudos que são os antepassados dos Krenak de Minas Gerais. Depois fiz um doutorado sobre marinheiros. Fiquei fascinada por suas histórias antes e depois de ingressarem na Marinha. Também me interessei muito por cultura marítima. Foi ali que eu entrei em contato pela primeira vez com a história da tatuagem. Descobri os primeiros registros que até agora continuam sendo os primeiros que encontrei sobre tatuagem ocidental no Brasil. Tratava-se das descrições das tatuagens nas fichas dos marujos de um navio de 1833. Aí esse fascínio ficou na minha cabeça. Passou um tempo lembrei de um outro arquivo que eu conhecia do Museu Penitenciário Paulista de mais de 2600 fotos de tatuagens antigas. A Biblioteca Nacional estava oferecendo uma bolsa para pesquisas nos seus acervos e juntei aos arquivos da Marinha e do Museu Penitenciário o acervo fabuloso de periódicos do século XIX e XX que eles possuem. Pronto o triângulo de acervos iniciais estava formado e eu ganhei a bolsa de um ano. Porque é assim que a gente faz um projeto de história, a gente tem de ter um conjunto documental de onde nosso trabalho vai começar. A pesquisa era pra ter durado no máximo 2 anos, mas acabei fazendo o livro em 5 porque a cultura da tatuagem é muito rica e variada.”
No seu livro você descreve um período entre o final do século 19 e uma parte do século 20. É possível fazer um paralelo entre o cenário que você descreve no livro e cena atual da tatuagem no Brasil?
“Em parte, sim. O tempo da tatuagem que abordei no livro era restrito à cultura popular, ou pra ser mais clara, era uma cultura da classe trabalhadora e por isso mal vista. A classe econômica dominante costuma desprezar a cultura popular ao mesmo tempo em que é fascinada por ela. No livro que resultou da minha pesquisa, quem se tatuava eram indígenas, africanos que vieram escravizados, marinheiros, soldados, prostitutas, trabalhadores em geral, artistas de circo e imigrantes. Na década de 1970 quando essa prática começou a ser absorvida por culturas urbanas e jovens de outras classes, acho que havia esse desejo de transgressão que a tatuagem representou por tanto tempo. Era afinal um movimento de contracultura, contra essas mesmas normas de comportamento determinadas pelas classes dominantes a que me referi anteriormente. Modificar seu próprio corpo, transformá-lo por motivos muito variados era uma vontade de transgredir estética e culturalmente. Talvez esse desejo ainda seja o mesmo atualmente nas pessoas de todas as faixas etárias, classes sociais, cores e etc. A tatuagem ocidental tem muito a ver com religiosidade e desejo, que nas classes populares era menos reprimido do que nas classes médias e altas. O que antes era considerado feio torna-se bonito.
O corpo tem um status fundamental para a subjetividade moderna. Expressar-se pelo corpo é importante para a identidade do sujeito a partir do século XX, principalmente a partir da década de 1960. A tatuagem está aí como você sabe para as pessoas terem mais auto estima, se acharem bonitas, expressarem suas crenças, suas ideias. Eu olho o tempo todo as tatuagens das pessoas, parece que isso me ajuda a conhecê-las mesmo antes de trocar uma ideia.”
Depois da publicação, como está sendo a sua relação com a cena da tatuagem no Brasil?
“A minha relação com a cena da tatuagem foi a melhor possível. Leo, eu não pertencia ao mundo da tatuagem, ela era um objeto de pesquisa. Eu simplesmente simpatizava com esse mundo e estudava ele com carinho. Com o lançamento, comecei a conhecer vários tatuadores e tatuadoras. Lancei em São Paulo, Brasília, Recife e Salvador sempre com tatuadores da década de 1980 na mesa e em colaboração com tatuadores mais novos. Comecei a ficar fascinada pelo mundo de vocês, porque os tatuadores e tatuadoras são profissionais muito interessantes, prestam um serviço muito íntimo aos seus clientes. Sempre ouço que vocês são psicólogos e que o momento da tatuagem muitas vezes rola um lance mágico, um vínculo eterno. E outra coisa que adoro são os directs e stories em torno do livro que recebo no instagram. E aí vou na página do tatuador, tatuadora, e conheço um trabalho de uma pessoa feminista, de um gaúcho da fronteira, do meu vizinho, de uma mina do Ceará. Comecei a conhecer um mundo que não conhecia e que é super interessante para pensar o tempo de hoje, os símbolos que prevalecem e as maneiras como essa linguagem rola entre o desejo do cliente e o talento e ideias do tatuador. Eu acho que eu entrei na cena pela generosidade dos tatuadores leitores que afinal gostaram do livro e procuram dialogar comigo. Foi um casamento bem feliz. Hoje olho pra esse mundo com o mesmo entusiasmo que olhei pra esse fenômeno no passado.”
Quem são os tatuados que você encontrou na sua pesquisa e como você os localiza na cultura nacional?
“Os tatuados e tatuadas do livro são as pessoas que eram marginalizadas por serem indígenas, africanos escravizados, pobres, imigrantes e prostitutas. A tatuagem era uma marca de infâmia para as autoridades e elites, mas para essas pessoas era marca do desejo da fé da expressão no corpo como falei acima. Como historiadora da cultura, eu descobri que apesar desses grupos sociais serem contemplados pela historiografia, a tatuagem nunca foi considerada uma característica importante. O fato é que a história é também uma resposta às questões do presente. Eu fui estudar a tatuagem no Brasil porque ela é um fenômeno cultural muito importante na contemporaneidade. E eu queria justamente entender como de uma cultura marginal ela se tornou nacional.
Confesso que ainda falta muita pesquisa pra explicar melhor como isso aconteceu. Como os tatuadores e tatuadoras pioneiros conseguiram a partir das décadas de 1970 e 1980 fazer essa passagem. E eles e elas têm de ser reconhecidos e reconhecidas por isso. Sempre que posso, eu entrevisto os tatuadores e tatuadoras da década de 1980 e tem mais gente fazendo isso. O Lico, tatuador de Brasília, tem postado essas entrevistas do projeto de história da tatuagem no Brasil, no Youtube, registrando pra todo mundo ver e ouvir o que essas pessoas passaram para poderem se tornar tatuadores e tatuadoras, além é claro, de gente nas universidades que cada vez mais se interessam pelo fenômeno da tatuagem.”
O que te chama mais a atenção nos tatuados e como você vê essa relação entre os corpos e as memórias?
“Os tatuados de hoje são muito diversos! A maioria ainda é jovem, mas todas as faixas etárias, classes e cores se tatuam. É claro que há muita diferença entre os tantos grupos que se tatuam. Como eu disse acima, hoje você tem uma tatuagem feminista, uma tatuagem ativista, tatuagem hiper realista, old school… é infindável a lista.
A relação entre corpo e memória na tatuagem é muito importante. A tatuagem já foi chamada de marca até o início do século XX e marcar-se é registrar uma memória que vai te acompanhar para vida. Por isso a tatuagem é uma marca tão importante de individualidade, subjetividade e auto expressão, isso a gente pode ver claramente na tatuagem de cadeia. O preso diz se tatuando, vocês podem me prender, me restringir, mas o corpo é meu. Podemos trazer essa ideia para toda a sociedade. Os indivíduos que se tatuam estão o tempo todo afirmando o seu domínio sobre o corpo, o corpo como lugar de memória, afeto, estética e sentimento.”
Para quem quiser adquirir o livro da Silvana para conhecer um pouco mais a sua pesquisa, é só entrar em contato direto com a autora por meio das redes sociais ou através do site da Editora Veneta. Aliás, o livro está com um desconto para quem usar a palavra “tatuagem” na hora da compra, pelo site. Acesse agora mesmo:
Site: www.veneta.com.br
Instagram da autora: https://www.instagram.com/silvanajeha/
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